É verdade, tudo tem um preço

il_570xN.228234198

Carta escrita no dia 26 de maio de 2014, enquanto você dormia [e a Trufa também!].

Helena,

Sempre achei imensamente hipócrita tudo que mostra apenas o lado lindo da maternidade/paternidade, querida. Porque, apesar de ser lindo, maravilhoso, transformador e revigorante, há dias em que chove no paraíso. Agora mesmo, enquanto escrevo essa carta, acabamos de passar por uma crise.

Acordei com enxaqueca, seu pai teve que sair correndo para trabalhar, você começou a chorar de sono, a Trufa [nosso filhote] começou a chorar, fiquei entre uma e outra. Você não conseguia dormir, porque ela chorava, ela não parava de chorar, porque não estava lá. No final, você dormiu, ela está brincando com uma boneca antiga sua e eu estou morrendo de dor de cabeça, mas escrevendo. Estou com esta carta há semanas na cabeça, chegou a hora de cria-la.

Quando soube que estava grávida, fiquei apavorada. Não tínhamos estabilidade financeira, nem estabilidade psicológica – mesmo seu pai jurando que esteve sempre preparado -, não havia casa, nem expectativas, nem nada. Aqueles dias foram terríveis, porque além de criar tudo do zero, havia uma descrença, uma pressão para fazer tudo acontecer muito rápido.

Quando você nasceu, ufa!, morávamos numa kitnet de 3 cômodos, tínhamos muito pouco dinheiro e estávamos irremediavelmente sozinhos em outra cidade. Revezamos [ainda fazemos isso, aliás], para ver quem dormia, quem conseguia terminar a comida primeiro, quem faria isso e aquilo. Aprendemos com socos diários a solucionar problemas e manter a calma, mesmo quando a vontade é começar a gritar.

Seu pai… o que seríamos sem seu pai? Já te disse que antes de tudo, ele é nosso melhor amigo. Vou ressaltar: ele é nosso melhor amigo. Atualmente, as coisas melhoraram e tem seguido para um caminho mais amplo em vários aspectos, mas como ressaltei, tem dias que chove uma tempestade colossal, estonteante e apavorante no paraíso.

Algumas pessoas nos vê como uma família centrada, nova, com boas ideias e que está sambando para conseguir tudo, mas está indo. Eu li e ouvi essas coisas, quase soltei uma gargalhada na face da pessoa. Ok, é uma verdade romantizada, mas tudo tem um preço tão… desafiador.

Faz meses que não durmo, tem dias que seu pai trabalha da hora que acorda até a hora de dormir, tudo para conseguir dar conta dos gastos. Passaram-se vários finais de semanas, que ficamos em casa, vendo séries, meio mortos de sono e cansaço. Quando alguém aqui fica doente, é um pandemônio. Todos os dias tem algo que nos desafia a ser melhor, a evoluir, manter a calma, respirar fundo “É apenas uma fase”.

Foto tirada no dia 23 de maio de 2014, depois de um dia "daqueles".
Foto tirada no dia 23 de maio de 2014, depois de um dia “daqueles”.

Ser pai e mãe, esposa e marido, trabalhadores e ainda tentar fazer algo que possamos deixar para você, de útil para nossa sociedade, uma tentativa desesperada de um futuro melhor, custa muito esforço.

Uma menina me mandou um email perguntando se era bom ser mãe. Helena, é maravilhoso. Há momentos, em que olho para sua mãozinha ou pézinho, fico admirando cada milímetro em você e respiro fundo. Outro ser humano, com personalidade, vontade, futuro, você é a melhor coisa que ajudei a se fazer vivo. Mas tem dias que sou mãe, mãe de cachorro também, mulher, esposa, dona de casa, blogueira, produtora cultural, gerenciadora, escritora, muambeira e feirante, nesses dias, bem no fim do dia, me vem alguns sentimentos ruins. Espera-se que pessoas da minha idade… estejam, sei lá, fazendo faculdade, bebendo tudo num bar, tudo que sei que grande parte dos meus amigos faz.

Seria feliz fazendo tudo isso? Sim. Mas me sentiria completa? Atuante? Uma pessoa com algo mais? Não. Ser mãe é uma escolha. Uma escolha que fiz nos seus primeiros dias. Na primeira semana, escolhi que tipo de pessoa seria que tipo de atitudes tomaria e o tipo de mudanças que faria existir em minha vida.

Nem sempre é fácil, bonito e limpo [dá-lhe pomada no cabelo], mas todo dia é feliz, é aprendizagem, é superação, uma constante evolução do que fui e jamais serei. Você me custou um preço, querida, o preço de ser uma tentante no caminho da melhora e pagaria esse preço um milhão de vezes.

Com amor,
Mamãe.

 

Um mundo de intolerância

2012, o ano da surdez.
2012, o ano da surdez.

Helena,

Tenho um péssimo hábito: desde muito pequena, quando as pessoas começam a me contar algo e, em algum momento, percebo que sei de algo parecido ou relacionado, na animação do momento, interrompo o dito cujo e vômito tudo que quero falar. Dizem que é falta de educação, me justifico com a ansiedade.

Em ambos os casos, é errado, devia esperar a pessoa terminar e assim dar vazão ao que quero passar. Acho que o mais próximo da realidade que vou conseguir chegar para explicar isso, é que sempre tentei me comunicar, informar, conversar, ligar os pontos e abundantemente colocar os pingos nos is. Para o bem ou para o mal, espero que quando você crescer, tenha a paciência para ouvir tudo antes de falar.

O fato é que atualmente nosso mundo parece meio louco. As pessoas tem falado muito, expressado muito, sem nem interromper. Eles apenas falam, falam e falam e esquecem que o diálogo é formado de duas partes. Um mundo de monólogos ou pior: um mundo de intolerância.

No mar da verdade absoluta de cada um, mora um estranho monstro. Ele tem dentes pontudos, olhos avermelhados, garras terríveis e parece um peixe fora d’água. Sua vida é espreitar a próxima presa, que é exatamente aquela que vai contra o seu argumento de engolir sem mastigar.

O ponto, é que nenhuma pessoa é sozinha, ao longo da sua vida você irá interagir com milhares. Antes de apenas falar, falar, falar e falar mais um tanto, é necessário ouvir o triplo. Não só pela educação, mas a melhor forma de compreender o mundo é escutar o que ele tem a dizer. Seja um bom argumento ou não, tudo é válido na constante aprendizagem de filtrar aquilo que irá nos compor.

Hoje, sou muito diferente da menina que era aos 15 anos e daqui 20 anos, serei quase que uma outra pessoa em vários aspectos. Todo dia torço para que anule o terrível hábito de interromper, mas mais que isso, todo dia torço para que você jamais cometa o erro de apenas falar e interromper a pessoa que poderia ser.

Porque o mundo, antes de tudo, precisa de bons ouvintes, mente ávidas por mudança e um pouco de tolerância ao perceber que ninguém, afinal, é uma ilha.

Com amor,
Mamãe.

Dos perigos de ter uma vida toda pela frente

Você com 30 dias e posso te jurar de pé juntos, que parece que foi ontem.
Você com 30 dias. Posso jurar, de pé junto, que parece que foi ontem.

Carta escrita no dia 12 de maio de 2014, mas concebida no dia 8 de maio, quando você completou 10 meses.

Helena,

Atualmente estou na fase dos “vinte e poucos anos”, números baixos invejados pelos “quarentosos”, aqueles que adoram proclamar: “Com sua idade fazia isso, vivi aquilo, ai se pudesse voltar no tempo…”. Parece que o mundo deseja permanecer nos vinte e poucos/trinta e tantos. É perigosa essa idade, na verdade, porque como todas as outras frases, existe uma constante que você certamente irá ouvir algum dia: “Você tem a vida toda pela frente… por que a pressa?”.

Não se apresse realmente. Cada idade, cada momento, cada experiência precisa de calma para total apreciação e absorção, mas, querida, não caia nos engodos de que você tem a vida toda pela frente e, assim, você pode passar horas, dias, meses e anos desperdiçando seu tempo com algo que você sabe que não leva a lugar algum.

Geralmente duvidamos dos nossos preciosos instintos, quase todos eles sabem as respostas para aquilo que procuramos ou devemos correr, só que continuamos em negação, surdos, seja por preguiça seja por comodidade. Olha, você estava no quente, aconchegante, fácil e macio lar chamado útero. Um belo dia você nasceu e foi jogada no frio, assustador, doloroso e implacável mundo que, assim como o tempo, não há escapatória. Ele passa tão rápido que um dia estamos chorando pelo seio de nossa mãe, no ano seguinte já nos lamentamos em alguma beira sobre o tempo que foi-se embora e a culpa é toda sua.

Mesmo sendo tão nova, já tenho minha cota de arrependimentos e do tempo que deixei passar. Todos nós temos, o problema é quando esse tempo é maior do aquilo que já nos resta. Por favor, não espere os vinte e poucos, trinta e tantos, quarenta e muitos ou oitenta e bolinhas para começar a fazer algo para si mesma. Minha mãe (sua avó) até hoje lamenta aquilo que nunca foi e fico imaginando a mulher feliz que ela seria se não tivesse investido toda uma vida a pessoas que seguiram em frente. Porque, afinal, pessoas seguem em frente, é assim que tem que ser.

Proust é meu escritor preferido, e ele escreveu um livro cheio do teor do passado que jamais volta, lembranças, caminhos e desilusões de um mundo que não é indulgente com aqueles que cegam a mente para a passagem do tempo. Ter a vida toda pela frente é perigoso, porque num momento você está nela, no outro ela está passando por você e não sabemos o que fazer com isso.

Com amor, Mamãe.

Café com sal e macarrão com açúcar

Foto tirada em 1° de outubro de 2013, faltando 8 dias para você completar 3 meses e eu 21 anos.
Foto tirada em 1° de outubro de 2013, faltando 8 dias para o seu aniversário de 3 meses e o meu de 21 anos.

Carta escrita em 27 de outubro de 2013, com várias alterações e finalização em 26 de abril de 2014.

Helena,

É comprovado por pesquisadores de Harvard que todos os pais são pirados. Lembro que quando era criança minha mãe vivia fazendo bizarrices. Uma vez a sopa da janta veio com dois toletes de manteiga que provavelmente era da cobertura do bolo, minha vó já relatou as inúmeras vezes que esqueceu por dias de pentear o cabelo ou não perceber que tinha um rabisco de canetinha no rosto.

São tantos dias sem dormir, num mundo de fraldas e leite, que quando percebemos vocês já estão querendo andar. Para apimentar nossa rotina, somos nós e nós. Moramos numa cidade longe de todos os familiares que seriam potenciais ajudantes quando a noite é uma festa. As 8 da manhã seu pai acorda meio lesado de sono e eu sou um zumbi endemoniado que grita com panelas.

Hoje consegui colocar sal no café e pior! Não percebi até estar na metade da caneca, meu desespero por cafeína era tão grande que tomei café salgado no desespero. Faz 3 semanas coloquei açúcar no molho, sorte que isso fazia parte da receita de alguma forma, mas jurava que era sal. Ontem fui com você até o parquinho perto de casa, na metade do caminho me deu um desespero, olhei para baixo porque tinha certeza que estava sem calça!

Quando você tinha pouco mais de um mês de vida e fazia pouco tempo que estávamos oficialmente em casa, uma bela manhã acordei com a boca suja de geléia, sem calça, com a camiseta toda suja e um bebê imaginário nos braços, porque você dormia pacificamente em seu berço. Naquele dia começava as noites insanas, as manhãs sonolentas e os dias de piração total.

Bebês chegam sem avisar – porque por mais que se planeje, é sempre um susto. Durante 9 meses nos oprimem num mar de sentimentos lindos e preocupações, no final nascem e nos transformam em seres apaixonados, de cabelos em pé, olhos brilhando e histórias infinitas para contar.

Mas a verdade desta carta não é para relatar nossos últimos meses de loucura total, é apenas explicar que nós pais, seres super poderosos que dizem SIM ou NÃO, acham que mandam em algo e tem uma árdua tarefa de educar, também são humanos. Nós temos cansaço, medo, sono, mal humor, ciúmes, insegurança e nossa dose de infantilidade. Poxa, também quero o colo da minha mãe!

O seu pediatra me disse para relaxar, que vocês crianças são mais resistentes aos nossos erros que imaginamos, só que nós pais não somos resistentes aos nossos próprios erros. Temos uma carga pesada de culpa que nos colocam, que auto infringimos e que sabemos que um dia vocês podem nos jogar. Não compreendemos que a humanidade se aplica e que podemos sentir certas coisas sem culpa.

Hoje consigo ver isso, mas sei que os anos vão me transformar, então querida, te escrevo também na esperança de que se um dia chegar o momento, você possa me lembrar da jovem mãe inexperiente que fez café com sal e macarrão com açúcar, mas que no final tudo deu certo. Estamos aqui e estamos bem.

Com amor,
Mamãe.

 

 

Uma Religião chamada Respeito

No dia 6 de outubro de 2013 você foi batizada, um escolha que tomamos quando você tinha poucos meses de vida na minha barriga.
No dia 6 de outubro de 2013 você foi batizada, um escolha que tomamos quando você tinha poucos meses de vida na minha barriga.

A primeira parte desta carta foi escrita em 25 de dezembro de 2013, algumas pequenas modificações foram feitas em 26 de abril de 2014, sua edição e término foi no dia 6 de maio de 2014.

Helena,

Quando você nasceu, ganhou uma linda medalha do Anjo da Guarda. Não sou religiosa, já fui durante um pequeno período da minha vida, mas devo confessar que minha fé diminuiu à medida que os anos chegaram. Novos artigos contestando a existência divina, o conhecimento controverso que algumas religiões pregam e a falta de interesse em crer em algo contribuiu para que isso acontecesse. Porém, eu amei aquela medalha, acreditei do fundo do meu coração que ela seria um acréscimo em sua proteção e, além dela, você tem a imagem de um anjo na porta do quarto.

Tenho religião? Não. Acredito em Deus? Não acredito que Deus seja um cara barbudo, loiro, de olhos claros, que mora no céu e manda os ímpios para o inferno, nem que seu filho Jesus é tão germânico quanto Ele. Cada religião prega sua versão de Deus, tenha Jesus na história ou não, e todas que vi até hoje não batem com o que acredito. Acho que existe uma simetria, uma compreensão e uma magnitude fantástica em tudo que somos, tudo que nos cerca, tudo que existe. Há possibilidades infinitas de ser melhor, de fazer melhor. O amor, a esperança, a alegria, a compaixão, o céu, as árvores, a luz do Sol batendo no rosto no fim da tarde, o sorriso de um bebê, existe algo de único nisso e lá deve residir o que chamam de Deus.

É complicado acreditar em algo hoje em dia, discutir isso entre as pessoas é quase como assinar o atestado de ignorância, porque é tão óbvio que não existe nada que Deus é quase Papai Noel – você será informada na infância que Papai Noel existe sim, porque a inocência é algo único e deve ser preservado.

Uma vez discuti com uma amiga que nós, humanos, necessitados de nomes e explicações, colocamos a culpa no que há de ruim nos seres humanos e no Diabo, e aquilo que fazemos de bom em Deus, como uma necessidade de justificar os atos. Seria triste demais viver uma vida sabendo que não existe nada depois dela, que passar uma existência corretamente não resulta num lugar banhado a ouro ou com muitas virgens à disposição, e para aqueles que cometem crimes terríveis, o mármore do inferno não lateja em espera. O motivo de existir e justificar talvez tenha sido o que criou a religião, talvez a sede de poder, dinheiro, controle, tenha dado o sabor apimentado que vemos hoje em dia. Cada religião matou sua cota de inocentes por motivos absurdos, todas pregam seus preconceitos ou desvios porque religião é composta por nós e nós, bem… Não somos um exemplo de perfeição.

Mas existe uma parcela que realmente acredita em coisas boas, que tentam fazer algo significativo, sonham em alcançar uma vida plena. Isso é cultural. Cada país, cidade, dialeto e criação têm suas crenças; talvez seja necessário uma boa dose de reflexão e compreensão, mas estuprar, matar, violentar, reprimir, sufocar, impor e maltratar é horrível, não importa qual Deus mande ou qual Lei exija.

O que quero dizer com isso? Um dia vão te falar que amar determinada pessoa é errado, que vai contra a vontade de Deus e que pessoas do mesmo sexo não podem ser uma família. Vão te dizer que você vai para o inferno se fizer isso ou acreditar naquilo, vão julgar seus amigos, vão te julgar. Vão impor e sufocar. Nem sempre será culpa da religião, mas algumas fazem isso, acreditam que é certo, porque pessoas acreditam nisso. No final, a religião é mais o reflexo de uma sociedade, não de algo divino ou superior.

Não importa qual seja sua religião ou das pessoas que te cercam, querida, eu realmente quero te deixar escrito nesta carta que tudo é uma escolha. Você pode acreditar em Deus ou não, no céu, no inferno e em todos os preceitos que desconheço, mas respeite as pessoas. Respeite as escolhas, as culturas, o mundo que evolui constantemente.

Você, Helena, tem um anjo na porta do quarto, uma medalha perto do berço, porque eu acredito em coisas boas e que colocamos nomes e explicações para isso, mas você pode acreditar no que quiser. Um dia você pode me pedir para retirá-lo, farei o que achar melhor.

Tenho crenças, mas qualquer vestígio de opressão que more nelas eu retiro, corto com uma faca e jogo num lixo. Pego a “parte boa”, aquilo que me ajuda a ser uma pessoa melhor, que me fornece força e consolo ­­­- porque ser racional é incrível, mas para as minhas experiências pessoais, não basta – tento ter fé, mas você terá outra vida, irá acreditar no que funcionar para você.

É um detalhe a religião, o nome do seu deus, a origem, o fim – o que realmente importa e sempre irá importar é o quão bem isso te faz, o quanto de conforto está levando para o mundo. Se isso não te machuca, não limite. No final, só queremos nomes e explicações para continuar amando, sorrindo, esperando, acreditando, criando pequenos bebês com a esperança de um mundo melhor.

Com amor,
Mamãe.

[off] Precisamos falar sobre meninos e meninas

 

family

A carta “Helena, você pode ser um menino se quiser” teve uma visibilidade muito maior que a esperada, então me vi na responsabilidade de discutir alguns pontos aqui.

Antes de tudo é necessário entender porque o Cartas para Helena foi criado. Antes mesmo de me descobrir grávida de Helena, tinha um medo enorme de morrer e não ter dito tudo que queria. Percebi mais cedo do que gostaria que a morte é realmente um ponto final, depois dela não poderia mais dizer os milhões de coisas que gostaria.

Quando o teste de gravidez deu positivo, comecei a escrever mentalmente várias cartas para o bebê que nem sabia o sexo ainda. Queria contar um pouco sobre mim, sobre o que acredito, aquilo que gostaria que meu filho ou filha soubesse, caso um dia não desse tempo de falar tudo. Também é um lembrete, do que sou, de quem fui, de quem quero ser. Tudo que aprendi e do muito que ainda vou aprender.

Mas porque publicar isso para todo mundo ver? Porque estou sozinha. Tenho vários amigos, uma família linda, contatos e todo o resto, mas escrever é liberar aquilo que tenho de mais profundo, no meu caso é terapêutico, é libertador. Vários blogs, sites e relatos mudaram aspectos da minha vida e se me fosse dada a oportunidade de fazer parte da mudança de alguém? Internet é algo incrível, fiz dela minha ferramenta de conexão.

Porém, nunca desejei visibilidade, de tanto que só compartilhei as cartas até então na minha página pessoal do Facebook. Não sei como ou onde, aquela carta específica ganhou espaço e em poucos dias já havia mais compartilhamentos do que imaginava. Vendo que ela estava criando sensações positivas, tentei divulgar no meu espaço pessoal na Obvious e desde então tudo decolou de uma forma estranha.

Fica esperança de que alguns assuntos que vá abordar em minhas Cartas possa estimular o diálogo sobre alguns assuntos, para filhos mais reflexivos e felizes com quem são.

Primeiro: Li todos os comentários e tenho respostas específicas para cada um. Não vou conseguir responder tudo agora, porque também há algumas dezenas de emails e tenho uma tendinite que me impossibilita de digitar muito.

Gostaria realmente de agradecer a tantas histórias contadas, corações abertos e mensagens belíssimas. Foi um prazer me conectar com vocês e a minha maior felicidade nisso tudo foi perceber que faço parte de milhares de pessoas que só querem ser feliz e deixar o mundo também ser.

Segundo: Houve comentários ofensivos e de ataque, mas infinitamente menores. Dando um número exato: 8. Só que não vou fingir que não me abalou, porque seria uma bela mentirosa.

Acredito que qualquer um pode discordar, discutir sobre, argumentar, conversar. Existe uma caixa no “Quem escreve?” para quem quiser entrar em contato direto e irei sempre responder, só não prometo que será imediatamente. O ponto é: Porque é tão imoral e burro deixar que nossos filhos escolham quem querem ser?

Usar como argumento “A moral e os bons costumes” é como dizer que “Você pode ser infeliz, apenas viva corretamente”.  O que é correto? Não acho correto ser oprimido, violentado, esmagado por uma força que exige que você viva num molde tão antigo que já não funciona. Toda essa moralidade está matando inocentes, porque criamos pequenos tiranos, que apontam o dedo e falam ofensas como pérolas.

Somos únicos em um sentido: personalidade. Cada um gosta de uma fruta, uma cor, tem sonhos, tem uma vida e tem o direito de lutar por isso. Não me importo se a religião diz algo, se o pai ou mãe discorda, não me importo se a vizinhança se incomoda, só me importo no que iremos fazer com os pequenos anos de vida que temos para usufruir. Quando dizem que a vida é muito curta para ficar perdendo tempo, não dê risada, é isso mesmo, não vá perder seu tempo com preconceito e, por favor, não perda tempo se apegando a conceitos morais insuficientes, que matam sonhos e aleijam a alma.

Terceiro: Este blog continua sendo o que é. Há ainda 8 cartas de antes de março, só que preciso edita-las, já que foram escritas com uma formatação de rascunho e terá muito mais até o dia que Helena puder ler elas e tudo que elas atingiram. Se você se sentiu bem ou tocado com algo aqui, seja bem vindo.

Quarto e último: Precisamos falar sobre meninos e meninas. Precisamos discutir nosso modelo de família, nossa estrutura como sociedade, nossos conceitos quanto pessoa e nossos sonhos para o futuro.

Vejo todo santo dia e fiz parte de uma família religiosa, composta de pai e mãe, sou branca e heterossexual. Isso me garantiu felicidade? Não. Imagine quem não tem algum dos pontos citados, ou pior, não tem nenhum. Há felicidade num mundo que não aceita isso?

Existem animais na natureza que se camuflam perfeitamente ao ambiente, é uma forma de se proteger dos predadores, se camuflar é segurança, todos os dias nos camuflamos de alguma forma, para poder acessar o mundo onde tudo é ofertado ao normal. Lembro que um dia li num jornal sobre mariposas que estavam ganhando uma pigmentação mais escura, assim como a casca das árvores, que estão cada vez mais afetadas pelo nosso meio ambiente.

Estamos constantemente evoluindo para sobreviver, realmente gostaria que todos reconsiderassem velhos hábitos e crenças, porque não somos mais como há 2 mil anos atrás, nem 200 anos, nem 50 anos, nem 10 anos. Hoje temos outras necessidades e precisamos conversar sobre isso, porque nossos filhos merecem um mundo melhor.

 

Paola.

Uma linha vermelha

1480735_600961093272649_12761933_n

Carta escrita no dia 1° de Maio de 2014, mas usando partes de um texto de 23 se setembro de 2011, quando ainda não sabia que seria mãe.

Helena,

Existe um mito chinês que diz que os Deuses ligam uma linha vermelha a cada pessoa que nasce, a mesma é ligada em todas as pessoas que de alguma forma iremos esbarrar ao longo da vida, a linha pode esticar, se embaralhar, mas jamais irá se romper. Segundo o mito nós estamos destinados desde nosso primeiro momento a encontrar quem encontramos, não importa a circunstância ou importância.

Apesar de realmente acreditar que este mito é lindo, toda a teoria de destino não me seduz, tudo que retire meu poder de escolha é brevemente descartado, mas não sei se você irá optar por este caminho. O ponto que quero ressaltar é que independente de como chegamos as pessoas ou situações, uma linha vermelha, internet, acidente de carro, esbarrão na rua, apresentação de amigos, o que nos deixamos para elas é uma responsabilidade única, é uma escolha.

Posso te contar as pessoas que fazem parte de minha vida agora, amigos, parentes, conhecidos, mas não vou conseguir lembrar ou citar todos que já esbarrei de alguma forma, que toquei, que machuquei, fiz sorrir ou tive algum significado, o legado dessa lembrança é minha responsabilidade. Nesses poucos anos de vida que consegui percorrer, algo que aprendi com ajuda de conselhos e vivência é que termos que nos isentem do poder que temos de marcar a história, nem que seja da forma mais simples, são desculpas para uma liberdade ilusória.

Somos aquilo que queremos ser e deixamos aquilo que queremos deixar. O perigo de cultivar a raiva é que ela volta, não no sentido vingativo da palavra, mas a ação que fez o sentimento surgir possui um motivo, esse motivo não morre com a raiva de alguém, ele continua e quando fazemos algo a alguém, somos protagonistas, o dano é gerado para ambos.

Querida, lamentei atitudes que me fizeram colher a raiva, ódio, desconfiança de pessoas que não eram importantes, mas que se tornaram importantes quando foram alvo dos meus danos. O que nos conecta as pessoas é uma linha que não se parte, mas no seu percurso carrega fatos eternos.

Vivemos uma média de 80 anos com sorte, um tempo ridiculamente curto quando comparado aos bilhões de anos do nosso Universo, a única forma de perpetuar de alguma forma nossa insignificante existência é deixando em cada ponto que tocamos algo que possamos nos orgulhar. A consciência disso é importante.

Hoje percebi que me arrependo de tantas coisas, tantos danos, mas outras me causaram felicidades imensas, a maior delas foi poder tocar as pessoas de forma benéfica, de poder me conectar com elas e fazer alguma diferença.

As vezes quase posso ver uma pequena linha vermelha saindo de suas mãozinhas, se conectando em mim e fico imensamente feliz em perceber que você irá passar por milhões, mas fui a primeira e sempre estarei aqui quando você precisar voltar ao ponto de partida.

Com amor,
Mamãe.

Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada

408197_311752278860200_1726101190_n

Carta escrita em 29 de abril de 2014, quando as lágrimas não bastam.

Helena,

Minha infância foi repleta de músicas e cantigas, como uma boa criança criada no interior de São Paulo, corri atrás do leiteiro na rua, brinquei eventualmente com algumas crianças na rua e tive um pouco do que a normalidade exigia. Um pouco.

Hoje vou te contar sobre uma das minhas maiores feridas: minha mãe. Sua avó foi diagnosticada com Transtorno Bipolar faz menos de 5 anos da data desta carta, mas posso confirmar que faz 22 anos que ela sofre com essa doença que ao contrário do que muita gente acredita, não é divertida, não é legal, machuca mais do que posso descrever.

Durante anos tive certeza que minha mãe era um péssimo ser humano e que por consequência era igual. Tal como ela, ganhei manias e hábitos que podem ser descritos como perturbadores, nunca confiei em ninguém, vivia num mundo próprio e acreditava que a única forma de ser especial seria cavando meu lugar no mundo com uma pá e a mesma pá eventualmente iria sacrificar outras pessoas.

Quando tinha 14 anos fui ao psiquiatra com ela, um protocolo na época do início do tratamento para a depressão profunda, lembro que logo após a sessão conjunta a especialista me chamou num canto e disse que quando fizesse 18 anos deveria “Correr o mais rápido possível para longe dela”. Sendo profissional ou não essa postura, me marcou de mais, e durante os últimos anos acreditei que o único caminho seria correr. Corra, Paola, corra.

E assim fui, corri. De tudo, de todos. Do medo, da dor, do amor, da amizade, do carinho, da intimidade, do mundo. Sabe o que ganhei? Mil e uma técnicas de como afastar pessoas com eficiência e como ser completamente infeliz. Também aprendi o que minha mãe fazia desde o dia em que nasci.

Sua avó sofreu muito e este é um ponto importante. Ela sofreu abusos, violência, humilhações e dores que preferia nunca saber, pois ele são pesadelos contantes na minha vida, mas é necessário entender que coisas assim deixam uma marca. Apesar de estudos falarem que Bipolaridade é genético, algo quebrou minha mãe e essa rachadura pode ser encontrada em todo o aspecto da doença.

Muitas vezes encontro essas dores em mim, causadas por ela, que foi vítima de outros. Uma história sobre dor e solidão, penso que a única forma de quebrar o vínculo é me tornar a melhor mãe do mundo e garantir sua felicidade, mas ainda vejo muitas coisas de minha mãe em mim, muita dor nas raízes da minha personalidade e tenho medo. Medo de um dia descobrir que assim como ela sofro dessa doença.

Existe a morte, o último estágio da vida, o ponto final para o que conhecemos e existe um tipo de morte mil vezes pior que é se sentir nulo, morto, mesmo estando vivo, andando por aí, conversando. Essa morte eu conheci, ela conheceu e você nunca irá conhecer, querida, porque minha única missão é garantir que você viva da forma mais plena possível e por isso escrevo isto.

Você precisa conhecer quem sou, quem sua família foi, quem você nunca irá ser. Tive uma casa muito engraçada, ela tinha teto, banheiro e rede, mas as pessoas lá dentro não tinham nada e do nada eu vim, do nada corri e do nada sempre irei morrer de medo.

Com amor,
Mamãe.

 

How I met your father

papaicol

Escrito em 14 de abril de 2014, enquanto você via Lorax com seu pai.

Helena,

O conceito de família é muito estranho, a palavra em si, aproximadamente, seria “servir a uma casa”. Se você pensar que uma das bases da sociedade tem a ver com servidão, cria-se um problema, porque ninguém deve servir ninguém, muito menos quando o foco é viver uma vida toda juntos e espera-se ser feliz.

Como nos criamos nossa família? Bem, tem a ver com teimosia. Quando conheci seu pai, estava numa péssima fase que já durava 20 anos, antes dele não me lembro de ter tido uma boa fase realmente verdadeira e duradoura. Colhi os frutos de uma família machucada e traumatizada.

Começamos sendo amigos, com longas conversas sobre tudo – principalmente sobre meus problemas, admito -, ele foi minha salvação num momento horrível, só que não estava planejado que haveria algo mais que amizade, até porque ele tinha uma namorada.

O pior estava por acontecer em nossa história, quando ainda éramos amigos. Sua vó ficou doente e teve que ser internada, seu tio me expulsou de casa e me vi sem ter para onde ir e ele de alguma forma conseguiu conversar a sua vó paterna – que você ama de paixão, diga-se de passagem – a me aceitar em casa. Foram 2 anos terríveis.

Nunca tive uma família em si, minha personalidade nunca foi ajustável a situações, tenho verdadeiro pavor de fofoca e gosto de silêncio, ou seja, tinha tudo para dar errado e deu. Quando te explico que nosso relacionamento foi um caso de teimosia, é porque eu tentei desistir, fugir, senti raiva da minha fragilidade e situação, virei quase um monstro e seu pai continuou lá, segurando minha mão.

Agora, quando sentamos na cozinha para alguma refeição e eu pergunto para ele “Porque ficamos juntos? Temos nada em comum” a resposta é sempre a mesma “Foi o destino, ele nos forçou”. Sim, não gostamos das mesmas músicas, nem sempre dos mesmos filmes, nosso gosto literário diverge em vários pontos, enquanto ele é a simpatia em pessoa, eu já consigo levantar a raiva de alguém com muito pouco, seu pai tem uma delicadeza natural para explicar e trazer qualquer um para a luz da razão, já minha pessoa nem sempre consegue ver através na cortina de rancor.

No final, foi um balanceamento. Ele anula o que há de pior em mim e eu acho que consegui criar com ele algo que vale a pena lutar.

Essa história tem mais detalhes e podres do que vou colocar aqui, porque além de longa, algumas coisas só foram lições aprendidas, não merecem ser repetidas jamais, nem para uma narrativa. Só queria te deixar um relato do que formou nossa família: a persistência de que as pessoas valem a pena.

Mesmo aquele que te deixa com raiva, querendo chutar e gritar, que te causa lágrimas amargas ou pesadelos terríveis, há uma solução ou uma forma de inverter a situação, no pior dos casos, você aprende a lição e segue em frente.

Ainda temos vários problemas, divergências, opiniões fortes e opostas, mas conseguimos no meio de tanto espinho fazer nascer algo sólido. Almas gêmeas nem sempre tem um caso romântico ou são idênticas, almas gêmeas são aquelas que tem força o suficiente para lutar antes do ponto final.

Seu pai… Bem, ele é teimoso, como disse. É impetuosamente irritante com o cabelo, porque vira e meche se tranca no banheiro e saí meio careca, também é criativo e paciente, ele é um lutador, nunca vi alguém lutar tanto pelo o que acredita. Ele acredita no melhor do mundo.

Ele acreditou em mim e sempre irá acreditar em você.

Com amor,
Mamãe.

PS: Ele também fica encontrando meus erros de português nos textos, não consigo saber se isso é bom ou irritante!

Uma prisão chamada Amor

O moço na foto é o cobrador do ônibus que peguei por um mês durante um curso. Por acaso encontrei ele e uma moça sentado na beira do rio no Bosque da Princesa, em Pindamonhangaba, numa tarde de domingo. Imprimi a imagem e dei para ele um dia, porque não sei se era amor, mas definitivamente foi um belo momento.
O moço na foto é o cobrador do ônibus que peguei por um mês durante um curso. Por acaso encontrei ele e uma moça sentados na beira do rio no Bosque da Princesa, em Pindamonhangaba, numa tarde de domingo.
Imprimi a imagem e dei para ele um dia, porque não sei se era amor, mas definitivamente foi um belo momento.

Escrito no dia 9 de abril de 2014.

Helena,

Mesmo com 9 meses você já possuí relacionamentos sociais, familiares, entre amigos que você nem sabe o nome e a medida que você crescer, vai interagir, compreender e doar mais de si mesma para esses relacionamentos, até que um dia, você irá se apaixonar.

O primeiro amor é estranho. Nem sempre é como nos filmes, meu primeiro amor foi um amigo que apenas recentemente consegui analisar com calma e perceber que foi meu primeiro amor, porque na época, jurava que era outra coisa.

O problema do amor romântico com relacionamento é que a maioria das pessoas baseiam a vida nisso. Planejam os estudos, as decisões, todas as escolhas e até mesmo a personalidade em relacionamentos, o que acho que é a única forma de destruir o mesmo. Pois é, adultos burros.

Não digo para você ser uma individualista sem coração, mas realmente quero te passar uma lição que aprendi de uma forma não poética: se você se aprisiona ao amar outra pessoa, irá morrer de inanição e matar o próximo nisso.

Quando conheci seu pai é história para outra carta, mas tinha muito medo de perde-lo. Tinha ciúmes doentios, neuras, ficava nervosa com qualquer coisa, por puro medo, afinal, nunca tive ninguém que realmente estivesse comigo para tudo. Demorou muito tempo para começar a compreender que não posso basear minha vida num namoro, num casamento, em outra pessoa, porque só teria o amor verdadeiro de alguém se tivesse personalidade, escolhas, vida própria e muito amor próprio. Gostamos de pessoas únicas, não de massinhas que se moldam perfeitamente a situações, como relacionamentos.

Então, quando chegar o dia de te aconselhar sobre um namorado, não falarei apenas sobre preservativos, irei te explicar sobre o amor, uma jaula que deve se manter vazia.

Estou com seu pai agora, no dia 9 de abril de 2014 porque posso viver sem ele. Posso ser feliz sem ele, posso ser fantástica sem ele, mas escolhi ter todos os momentos, me preocupar com a felicidade e tomar todas essas decisões com ele.

Você poderá dominar o mundo quando crescer, sozinha, sem nós, sem “ele”, será sua escolha manter quem você quiser na sua vida, dando espaço e importância para isso na medida certa, porque isso é amor, querida.

Eu te amo tanto, mas tanto, que as vezes choro vendo você dormir, mas quando chegar a hora, irei abrir a porta de casa e te deixar ir, irei abrir a porta do meu coração e acolher outra pessoa ou qualquer decisão sua. Amor também é abrir portas.

Com amor,
Mamãe.