Corpo estranho

Arte: Ravi Tej

Carta escrita no dia 15 de maio de 2018.

Helena,

A primeira vez que notei que existia alguma coisa muito errada com a forma em que percebia meu corpo faz quase um ano. Tinha pleno conhecimento de que era gorda, até porque o mundo sempre me lembrou muito bem isso com seus jeans em números mínimos e bancos estreitos, mas isso não estava completamente claro na minha consciência – o que é bem estranho admitir.

Um dia, olhando meu reflexo na porta de um banco 24 horas, notei uma estranha que por um acaso era eu. Fiquei por vários minutos observando e não havia sentido.

Fazia uma hora que tinha penteado o cabelo olhando no espelho. Semana passada havia comprado aquele jeans. Como assim não estava reconhecendo meu reflexo?

Voltei para a casa meio transtornada, parecia que havia perdido algo muito importante mas não sabia exatamente o que era.

Depois disso, comecei a pedir para pessoas próximas me enviarem fotos de outros corpos parecidos com o meu. Dito e feito, não me reconhecia em nada que eles enviaram. Naquela noite nem cheguei a dormir, estava assustada.

E desde então, vira e mexe fico me encarando em algum espelho, observando aquela estranha que entra no meu corpo algumas horas por dia.

Até que caiu aquela grande e gloriosa ficha: tudo mudou o dia que entendi a repulsa que morava em cada fibra daquela constituição física. Foi quase uma mágica, mas daquelas que demoram anos para acontecer.

Acho que a primeira vez que odiei meu corpo tinha nem doze anos. Nada fazia sentido, nem as pontas dos meus ossos ou minha orelha “enorme”. Sentia vergonha, sonhava com o dia que teria curvas e passaria por aquela mudança horrível. Mesmo sentindo uma fome enorme, às vezes deixava de comer com medo de engordar. Olhava em volta e me sentia errada, com a constante sensação de que precisava melhorar algo.

Depois que engravidei a primeira vez, a repulsa completa começou. Odiei cada estria, cada marca, cada dobra do meu corpo. Vivia entre picos em que comia até passar mal e semanas em que me alimentava com uma refeição por dia. Ansiava por encontrar alguém e ouvir a constatação de tudo ficaria bem com o velho e péssimo “Nossa, você está linda! Está magra!”.

E esse foi o meu normal por anos. Até que depois de você completar dois anos, entrei numa fase onde comer se tornou uma fonte de paz e prazer. Me alimentava para comemorar e sofrer, para me sentir viva, já que parecia o único ato que conseguia conter minha ansiedade. Com isso, veio a tremenda vergonha.

Olhava meus braços quando segurava a barra do metrô e queria sumir. Comecei a entrar num ciclo onde me escondia do meu próprio olhar. Por vezes, só relaxava no escuro e não conseguia entender o porque disso. Até que um belo dia você percebeu que eu era gorda, filha.

Você disse que eu era linda mesmo sendo gorda.

Você já ouvia do mundo que ser saudável e bonita era ser magra. Isso me deixou apavorada. Foi mais ou menos no mesmo período que comecei a encarar aquela estranha no espelho. E por mais que falasse para você que ser gorda era normal, que ser gorda não me tornava uma pessoa doente, tentando tirar essas ideias enquanto sentia um ódio mortal de nossa sociedade, percebi que estava te falando coisas que nem eu acreditava ali no fundo. Estava assistindo a história se repetir?

Helena, essa é minha batalha mais antiga e que nem sabia que era tão grande em minha vida: eu e meu corpo.

Fui criada para não tocá-lo, não reconhecê-lo como um ambiente que devia me sentir confortável, mas uma estrangeira. Acostumada a usar roupas que apertem, a encarar a alimentação como um momento de contar calorias mentalmente, alheia. Como poderia me sentir bem quando meu próprio corpo era um planeta repulsivo?

Foi quando comecei a realmente entender tudo isso. Longas caminhadas olhando os músculos da minha perna se movimentarem. Colocar a mão na minha barriga e afundar e estufar cada gordura. Levantar e descer o braço até entender como cada movimento acontecia. Comecei a me apresentar aos poucos para aquela parte que já convivia fazia 25 anos.

Ainda tem dias que me sinto em guerra com cada célula que constituí esse corpo, mas tem dias que começo a entender no meu interior cada parte, cada história. Lembro do dia que cocei minha perna e apareceu aquele conjunto de estrias. Olho meus seios e quase choro lembrando de todas as madrugadas que passamos acordadas, você muito bem, eu morta de sono te dando o peito.

Assim como explorar uma terra inóspita, tem dias que quero voltar para casa e só entrar no automático, mas tem sido mais numerosos os dias em que acredito que essa aventura vai muito bem e está só começando.

Não sou capaz mais de falar de forma tão fácil “ame seu corpo” porque descobri que amar meu corpo de verdade é muito mais doloroso e difícil do que imaginava. Não consigo mais repetir essa frase sem pensar muito sobre ela, mas consigo falar sem titubear: conheça seu corpo. Entenda seu corpo. Se o amor que sinto por você se construiu por anos, acho que consigo traçar um paralelo semelhante.

Perceber que vivo dentro do meu próprio inimigo me fez encarar quantas horas, lágrimas e dores levei durante todos esses anos nos meus ombros. E sabe, me sinto ansiosa para me livrar de tudo isso. Não será do dia para a noite que vou me sentir cheia de amor próprio, mas comecei a me reconhecer e aí mora toda a transformação.

Por agora, continuo tendo longas conversas com essa estranha do reflexo para muito em breve conseguir te falar porque não existe nenhum problema no fato da sua mãe ser gorda.

Com amor,
Mamãe.

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