Arte: Alice Welinger
Carta escrita dia 19 de abril de 2018.
Helena,
Sua mãe provavelmente é uma daquelas pessoas sorrateiras que ficam observando os outros. Alguns filmes de terror colocam tais perfis como vilão, mas na verdade sempre fui muito curiosa sobre como todo mundo se comporta quando acham que não estão sendo observados.
Como as pessoas pegam seus celulares automaticamente quando se sentam para fazer uma refeição. Ou como uma mãe fica com o olhar vazio por vezes quando seu filho está na caixa de areia. Tem também os vendedores de café da manhã que estão em várias esquinas da cidades. Eles arrumam o pedaço de bolo, o café e cobram sem nem mesmo olhar para o rosto dos fregueses.
Não é sobre julgar, realmente gosto de observar tudo isso e colocá-los em minhas histórias. Em um universo onde analiso grandes números, observar coisas sem “valor” me lembra que sou humana. Sou um like, um seguir, um crush, mas também sou humana. Ainda estou aqui.
E tem um restaurante em si que amo por perceber como tudo ali é tão tão forçado. Sim, é estranho me sentir livre num ambiente forçado, mas isso provavelmente diz muito sobre os ambientes que normalmente vivo. Me sinto entre iguais. E ali, é algo gritante.
Os atendentes sempre sorriem, te tratam super bem, brincam, estão constantemente de olho no seu prato, copo e tudo que mostre desconforto. Você se sente abraçado se se perceber o esforço humano que tudo isso representa. Ao virar para a próxima mesa, é fácil notar aquela ruga entre os olhos. O pescoço rígido. Os braços cansados de levar pratos pesados de um lado para o outro.
E provavelmente meu momento preferido é o parabéns. Eles se reúnem em volta da mesa e cantam parabéns batendo colheres, palmas, uma felicidade. Quando termina, todos viram e é como se nada tivesse acontecido. É aniversário de quem mesmo? Ah sim, o cliente número 45 do dia que fez aniversário e ganhou um sorvete. Certo.
Hoje contei para uma moça que sempre vejo por lá que estava indo entregar minhas coisas porque pedi demissão. Ela me disse que não devia falar sobre isso, mas também havia pedido licença porque era muito difícil estar sempre muito feliz. E como eu entendo ela. Feliz em mudar de mesa em mesa. Feliz sempre.
Ela deu risada da minha descrição visceral do parabéns, como era quase como se eles estivessem pegando aquelas colheres e batendo para acordar o deus das sobremesas sem gosto. No fim, anotou num papel uma série para assistir chegando em casa.
E advinha? O começo da série é uma mulher que fica obcecada com uma propaganda de margarina com a seguinte questão “Quando foi a última vez que você foi feliz?”. Uma advogada de sucesso, descobre que será promovida e pira porque isso está em todo lugar.
Querida, eu achei que por muito tempo meus problemas de adulta seriam dinheiro, romance, sei lá. Mas a verdade é como você luta para não se tornar alguém que acha tudo normal. Olha, uma pessoa passando fome na rua, que normal. Nossa, estão usando nossos dados para manobra política, mas poxa, tá tudo bem.
Claro que aquele garçom tem que me tratar super bem mesmo eu nem olhando para a cara dele. Sou muito especial!
Os sentidos vão ficando tão gastos, tão em segundo lugar. Eu sei que o mundo está perigoso, mas além do dia de hoje, fazia meses que não conversava com alguém que não fui apresentada porque teria que trabalhar com ela. E minhas poucas tentativas de abrir diálogo com elas foi imensamente falho pois não estava falando só de trabalho.
Lembro que a última vez foi um homem em um semáforo. Ele devia ter uns 70 anos e me disse que tinha o rosto igual uma atriz da época dele. Sorri. Me senti feliz. Provavelmente ele jamais irá saber, mas meu dia estava sendo horrível. Tinha acabado de ser destruída psicologicamente em uma reunião ao ouvir vários absurdos e só queria chegar em casa e morrer de exaustão na cama.
Todo mundo precisa de um “Quando foi a última vez que você foi feliz?”. Porque não tem como ser feliz toda hora, todo dia, mas tem como ser feliz algumas vezes com pessoas que assim como você, precisam da mesma questão.
Provavelmente vou voltar lá e deixar meu telefone com aquela moça. Acho que podemos rir juntas de parabéns, colheradas e sei lá, como meu pâncreas tá todo destruído de estresse.
Helena, pare e observe: quão devastada você está sendo pelo meio que você vive?
Essa resposta importa.
Com amor,
Mamãe.
Sabe Paola, tenho a mesma afixação por observar o cotidiano alheio e sempre me vem questionamentos sobre o quão rasos e momentâneos temos sido. Acompanho vc já tem um tempo e através dos fragmentos que vc mostra da sua trajetória, observo a saga em busca do algo a mais, da paz em se viver nem sempre feliz, mas de fazer aquilo que se acredita ser o certo. Obrigada por dividir comigo suas experiências, mesmo sem saber vc me ajuda à acreditar que vai ficar tudo bem! Vc nunca estará sozinha nessa jornada. Continue existindo.
Conta que série é essa! Precisando de um chacoalhão desses de tirar da órbita caótica da obviedade. Obrigada por isso!