Para o pai que nunca tive

Carta escrita no dia 26 de março de 2018.

Helena,

Faz uns dias que tenho pensado em escrever uma carta para meu pai. Ensaiei as palavras, acusações e sentimentos no caminho para o trabalho, antes de dormir, em escapadas distraídas em reuniões de trabalho.

Por fim, concluí que talvez não fizesse sentido escrever uma carta para um homem que se transformou num desconhecido desde os meus dez anos de idade. Isso jamais iria fazer diferença alguma na história que percorri até então, mas talvez pudesse me ajudar a reorganizar o futuro. Esse futuro que já não me assusta, mas me deixa inerte, compreendendo que aquela ideia de perder o controle nunca foi tão real.

Pensei no meu pai quando cheguei nessa cidade voraz e senti que por mais que trabalhasse vinte horas, fizesse tudo que todo mundo quer, mesmo assim não estaria bom. Sempre faltaria algo. Pensei que ele poderia segurar minha mão e me levar até a padaria do bairro para comprar um pavê, igual fez todos os fins de semana da minha infância.

Lembrei dele quando você nasceu. Acreditando que poderíamos superar tudo e finalmente teria o convívio de alguma família. Minha filha teria mais que uma mãe e uma avó. Imaginei alguns fins de semana. Imaginei tanto que por vezes contava histórias como se fosse real.

Pensei nele quando esperei numa delegacia ficar pronto meu B.O por estupro. Pensei que ele poderia estar ali para me defender do olhar julgador da atendente. Quem sabe, pudesse deixar na mão dele um pouco da dor que sentia, da terrível solidão que parecia comer minhas entranhas.

Por algum motivo, pensava nele em todos os momentos que me faltavam forças. Ele ainda era o herói que sempre admirei. O homem que acordava cedo, ia para a fábrica, voltava, deitava sempre no tapete, gostava de colocar maionese no prato de comida. O homem que gostava de bolo de fubá e sopa com pedaços de frango. O homem que me levou para fazer o primeiro cadastro na biblioteca municipal da cidade e ele nem sabia que com isso estaria mudando minha vida.

E por muitas vezes gritei com minha mãe a raiva que sentia desse mesmo homem que aos poucos foi me abandonando. E ali, no cantinho da minha cabeça, ele sempre existiu numa fantasia benevolente.

Agora, com tudo que já passou, percebo que todo o conhecimento que tenho do que faz homens fazerem isso com seus filhos, na verdade, melhorou minha dor. Primeiro me revoltou e me causou a maior raiva que já senti até então. Depois, percebi que precisava seguir em frente. Era necessário dizer adeus ao homem que só existiu em minha mente e ser justa com as mulheres fantásticas que de alguma forma cuidaram de mim. Me incluindo nessa lista.

Precisava me apegar ao que existia de forte no meu ser. E assim, a Paola se levantou da delegacia acreditando que tudo ficaria bem. A Paola pegou na mão da pequena bebê que tinha nos braços e caminhou. Filha, apesar de só ter revisitado o passado criando um novo significado para ele, isso fez toda a diferença.

Foi necessário voltar para o dia que fugi da casa dele aos treze anos. Sentir o sol, notar a roseira no jardim florescendo novamente. Abraçar minha irmã ainda bebê mais uma vez e dizer algo que nunca disse para aquele homem: você não me decepcionou, infelizmente você fez aquilo que muitos pais fazem, eu só não sabia disso até então. E agora… Agora eu preciso seguir sem você.

E sem romantizar, justificar ou tentar conversar, foi exatamente isso que fiz. Pois laços de sangue não são uma justificativa para fingir que nada disso aconteceu. Só que precisei fazer isso: seguir.

E depois disso, você foi morar com o seu pai porque ele não é meu pai. Porque você vai ter exatamente aquilo que nunca tive no que depender da família fantástica que te cerca: o melhor de todos os mundos e realidades.

Crescer numa família completamente estranha me fez quem sou. Me fez escrever essa quantidade de cartas, começar um livro, ter o trabalho que tenho. Todas as visitas à delegacia, hospitais, brigas familiares, o medo, o ódio, a simples alegria do pão de batata e café com leite, tudo isso me partiu e remendou tantas vezes, que agora sinto que posso começar a deixar esses pequenos pacotinhos de mágoa, raiva e dor pelo caminho.

Por mim e por você.

Helena, se pudesse escrever algo para o pai que nunca tive seria: você fez falta, muita, mas agora preciso te abandonar em alguma curva dessa cidade.

E assim, rápido e nada fácil, seguir para a padaria mais próxima e tomar minha média coada rindo sozinha. Querida, que aventura doida é essa que chamamos de vida.

Ansiosa para os próximos capítulos.

Com amor,
Mamãe.

3 comentários em “Para o pai que nunca tive”

  1. Chorei do início ao fim. Tive o melhor pai do mundo mas ele foi morar no céu há mais de dez anos. Reconheci-me nessa falta. Todo meu respeito e admiração por ti.

  2. Lindamente doída essa carta! Me permita dizer, amo a pessoa que você retrata ser… sendo. Adoro suas cartas, admiro sua coragem e sua fragilidade. Que meu abraço te alcance.

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