Tudo está fora do lugar mas faz muito sentido

Carta escrita dia 24 de janeiro de 2018.

Helena,

Aos vinte cinco anos percebi que me diverti poucas vezes. Não de me divertir saindo, encontrando amigos ou tentando fazer coisas numa tentativa desesperada de me enturmar, mas de fazer algo que queria muito com o único motivo de me satisfazer pessoalmente.

Nenhuma justificativa sobre ir trabalhar, levar você para férias ou fazer algo em casal, pensado para a família ou para amigos. Fiz algo por mim, para mim. Aos 25 anos. E algo tão simples foi todo um universo de transformação.

Numa noite, peguei a mochila, coloquei várias roupas, procurei a viagem mais barata possível e uma que jamais faria sozinha por sempre desistir na última hora: não é o momento, preciso trabalhar, não tem como levar a Helena, mas é um lugar que fulano não gosta, não posso… Não posso.

Deliberadamente sai do assunto, apenas fui. No ônibus, pensei que conhecia dezenas de pessoas da minha idade que já tinham viajado para outros continentes, mochilões, idas hedonistas para a praia… O que exatamente eu estava fazendo da minha vida mesmo durante esses anos? Ah, sim, meus últimos cinco anos foram como sua mãe, metade deles gritando para o mundo que eu podia ser mais que apenas sua mãe.

Talvez ao ler isso você pense que me arrependo de ter você e desde o seu nascimento eu me privei, não pude, como se você, tão nova, fosse uma pedra na saída de um longo túnel. Filha, as transformações que me aconteceram nos últimos anos foram tão bruscas e enormes, que olho para a menina que te segurou nos braços na saída de um dia chuvoso e tenho vontade de começar a rir e chorar. Coitada, ela realmente acreditava que um bebê seria sua redenção de vida.

Helena, você foi e é aos quatro anos minhas noites em claro, meu eterno coração dolorido de saudade, o olhar apertado pensando em receitas que você coma sem berrar na mesa, a permanente ruga entre os olhos de preocupação sobre não saber muito bem o que estou fazendo ao tentar educar uma criança quando nem eu sei coisas tão básicas da vida como me divertir ou relaxar. Mas também é a centelha de fogo que me ajudou a acender essa fogueira onde queimo tantas mágoas, traumas e medos. É o coração cheio ao dormir comigo desejando que você tenha uma infância feliz e na vida adulta, saiba que terá sempre alguém para voltar se algo der errado.

Mas não, nos últimos cinco anos tenho vivido processos que me permitem hoje pegar aquela mochila, viajar quatorze horas até uma ilha e me perder entre suas trilhas de areia, quase esquecendo quem sou.

Não por vergonha, por detestar minha vida, por não querer ser sua mãe, mas por viver isso uma forma mais questionadora e profunda, me permitindo sim esquecer dos problemas pois eles são uma parte da vida, não o total dela. Poder partir e voltar para dentro sem temer me perder.

Tudo isso me fez analisar todas as amarras estruturais que me foram impostas quando me tornei sua mãe não porque você é uma criança, mas porque o mundo tem uma forma de lidar com mães que me fizeram adoecer e por vezes duvidar da minha própria sanidade.

Por várias vezes escrevi sobre como estava sem controle da minha vida e tudo bem isso. Como sou forte e posso tudo. Helena, quem tentei enganar mesmo? Lá, sentada no primeiro luau da vida, com o mar batendo na encosta e jovens bêbados cantando músicas, percebi que realmente, não estava com eles na mesma página mas podia me sentir bem em estar ali vivendo minha própria realidade.

Não uma estranha entre jovens ou uma menina entre mães que se encontram na reunião do condomínio, apenas uma jovem que se tornou mãe e tomou coragem de fazer coisas sozinha. E preciso valorizar, comemorar e repetir esses pequenos passos.

Desejo que um dia você encontre, independente do tipo de gosto ou escolhas que faça, a mesma liberdade para se permitir só se divertir, filha. Se um dia for mãe, se nunca for, se decidir mudar de planeta ou se transformar numa girafa, apenas desejo que onde esteja, consiga encontrar momentos de fuga e tranquilidade, como quiser, numa multidão ou sozinha num canto do continente.

Lá, quando tentava encontrar onde estava com um mapa todo amassado nas mãos e um sol escaldante queimando os ombros, numa mata silenciosa, me senti tão perdida que sentei numa pedra e fiquei desolada. Sem entender que aquilo era uma bela metáfora para minha maternagem, minha infância, minha vida adulta.

Um cachorro da ilha me encontrou e ficou no retorno, me olhando. Esperando, como quem diz “Essa menina tá perdidinha”. E levantei, segui, lembrei de quando estávamos de férias numa cidade no interior que nunca nem cheguei perto, depois de horas de viagem de ônibus, procurando um restaurante aberto às 23h de um dia de chuva, quando você me perguntou “Mamãe, você tá perdida? Você parece perdida”.

E eu olhei para o mapa, olhei para a noite e jantamos lasanha de madrugada naquele dia. Sim, bem perdida. Tudo está fora do lugar mas faz muito sentido.

Se sua mão estiver ali, segurando a minha e minha companheira nessa grande viagem puder me fazer rir, chorar e entrar em pânico, provavelmente em algum momento encontro o caminho, amiga.

Com amor,
Mamãe.

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