Lugar comum

collage

Carta escrita no dia 20 de dezembro de 2015.
O ano que mudou a nossa vida.

Helena,

Estava voltando do trabalho semana passada quando vi uma menina quase ser atropelada. Parece que meu destino é passar pela Avenida Paulista  e ver um acidente, e ficar ali, parada, como se o choque tivesse acontecido no meu corpo. E de alguma forma é sempre na alma. Dessa vez puxaram a menina que escrevia no celular animadamente a ponto de não perceber que estava na beira da calçada numa esquina de um dos lugares mais movimentados da cidade.

Ela, assustada, se encostou no muro e ficou respirando fundo, tremendo com o celular na mão. Preocupada, fui até lá perguntar se estava tudo bem. Talvez pelo choque, talvez pela necessidade, acabei ouvindo que a Carolina, uma estudante de 17 anos, estava fugindo de casa e iria morar com o namorado, e naquele momento em questão estava combinando como iria proceder.

Primeiro olhei para o céu, depois para aquela garota 6 anos mais nova, com um longo cabelo escuro e uma mochila azul e me reconheci naquela situação, fosse por paixão, fosse por não suportar mais os pais, ou até mesmo se o motivo fosse uma tendência à se rebelar, todos aqueles motivos que também já me motivaram.

Ela me contou em quinze minutos a história, sorriu, e partiu. Eu fiquei lá, vendo as pessoas passando, me perguntando, finalmente, depois de cinco meses, o que diabos estava fazendo nessa cidade. Caiu a ficha, Helena. Finalmente um grande balde de água fria despencava na minha cabeça.

Eu estava sozinha.  Ao meu redor milhares de pessoas corriam para urgências, saindo e entrando do trabalhando, se encontrando, amando, chorando e sonhando, e eu não era ninguém na multidão. Não era especial para ninguém ali. Chegando em casa não teria nada pronto, não teria um abraço, nem o conforto, só o meu reflexo no espelho.

Encostei no mesmo lugar daquela menina me sentindo pela primeira vez na vida vazia. Finalmente entendia o que era se sentir sozinho no meio de uma multidão. E isso me fez lembrar da primeira vez que saí de uma casa por vontade própria, lá com meus 13 anos de idade, poucos quilos, nenhuma ilusão para uma criança, saindo de uma casa por não suportar mais.

Já te contei essa história, mas não fui totalmente sincera, não falei o real motivo do porque fui embora. Não era apenas ser maltratada, era não ser aceita. Desde sempre fui a menina que ninguém queria no meio de uma família preocupada com seu próprio caos. Não era simpática, não falava, só queria ler, me achava feia porque não tinha nenhuma aptidão com nada do que me falavam.

Eu sei, é um clichê. Muitos filmes e livros já reproduziram isso. Só que eles não reproduzem com tanta precisão o terror que é viver isso. Me tornei uma mentirosa compulsiva na infância para suprir as lacunas da minha história. Não era uma menina no meio de um divórcio infernal, era uma garota cujo o pai era judeu e estava muito ocupado trabalhando. Não era alguém que sofria bullying na escola, era uma menina que não se importava com esses míseros humanos.

Anos me fechando em uma concha para me proteger da cobrança. Do medo, da solidão. Seja magra, porque olha só, sua mãe é gorda, você vai ser também. Sorria, olha só como minha sobrinha é, as pessoas gostam dela. Esses livros que você fica lendo são muito estranhos. Você é muito estranha.

E eu pensava que iria conseguir superar isso, que com o tempo iria doer menos. Com o tempo isso iria ser uma piada. Mas não é. Jamais será. E falar sobre isso sempre criará margem para alguém usar como ataque. E um dia grande parte das pessoas que você acha que nutrem algo por você vão partir. Em uma bela manhã você pode ser ignorada. Porque você decidiu falar, porque você decidiu se aceitar. A casa fica mais vazia, e pela primeira vez isso não é ruim.

Helena, ali naquele muro, no meio daquelas pessoas, eu não era estranha. Era mais uma na multidão. Estava sozinha! Sem ninguém para me incriminar, apontar, podar, rir ou silenciar. Se o preço para me libertar era esse, bem, poderia pagar por ele para sempre. Saber que meu trabalho reflete minhas crenças. Finalmente me sinto aprendendo algo, revendo privilégios, analisando tudo que me influenciou até hoje. Que temos os melhores amigos do mundo, e que você está crescendo tão forte, tão doce e independente.

Que tem dias que sento no sofá, tiro os sapatos, te dou o seu suco e fico ali, exausta, com o humor azedo, calculando todas as contas que se acumulam no fim do mês, mas que isso irá passar. Vou levantar, tomar banho, vamos brincar, dormir e será um novo dia. E hoje estamos mais perto da solução do que ontem. Que vou perder o sono, que vou me sentir culpada, mas que hoje, só por hoje, chegamos no fim do dia com um saldo positivo. Estamos juntas, estamos livres.

Tudo isso aconteceu em poucos minutos e a vida continuou. Peguei o ônibus, te busquei na escola, voltamos para a nossa rotina.

Não vou mentir dizendo que não tenho sonhos, que não espero algo de você, porque seria terrível. Realmente queria que você pudesse viver a infância que não consegui. A adolescência  que não pude ter. E quem sabe ser a adulta que eu ainda me esforço para completar.

Moveria céus e terra pelo o seu direito de ser o que você quiser. Ser o que você é. Não importa o tamanho do seu jeans, seu gênero, sua faculdade, ou a ausência dela, sua cor de cabelo, qualquer coisa. Queria que você pudesse um dia andar no meio da multidão e se sentir aceita.

Agora estou chorando bastante, e talvez essa carta fique difícil, mas queria poder garantir que nada disso será podado ou silenciado em você. E sei que sou uma, e o tempo passa. Sei que você irá enfrentar desafios, violências, preconceitos e estigmas, que talvez chegue o dia que te chamem de puta, adultera, fútil, estranha. Coloquem nomes para aquilo que desconhecem, ou jamais deviam querer supor. Um dia posso não estar lá para te defender.

Um dia você pode acreditar que não deve confiar em ninguém, assim como me senti. E os dois grandes conselhos que posso te deixar depois desse longo, exaustivo, destruidor e terrível ano, é: não desista e confie.

Não é sobre desconfiar de tudo e todos, mas confiar no seu instinto. Ele não mente. Ele dá medo, é difícil se ouvir quando somos influenciadas até amortecer os sentidos. Confie, Helena. Dê votos ao que o seu coração diz. O que sua mente manda. Se algo te diz que é abusivo, que está errado, que não pode ser assim, escute.

E não desista.

Essa parte é a mais terrível, tenho cicatrizes visíveis e tantas outras que ninguém pode ver, todas lembranças de desistências que terei que conviver para sempre. Só que ainda estou aqui, você ainda está aí.

Você está lendo isso, você chegou até aqui.

Esse é o nosso lugar comum, querida. É aqui onde todos nos encontramos. É quando você não sabe o que fazer, sentir e pensar. Quando a porta se fecha e no escuro você não encontra a janela. É aqui que você segura a minha mão. É exatamente nesse lugar tão vazio que a gente tira força da onde não existe.

Tiramos força das pessoas que aqui passaram.

Nesse lugar onde aquela menina tirou coragem, aqui que um dia passei quando era uma criança de cinco anos assustada. Aqui sua avó teve o primeiro filho aos 15 anos de idade depois de um abuso. Aqui sua irmã tirou ar para respirar até o último minuto.

Helena, é aqui que você vai tirar forças quando precisar. É aqui que nós sempre iremos existir. Para sempre. Essa força que envolve laços tão antigos, tão estreitos, que não pode ser limitado por sangue ou geração.

Sabe todas aquelas cartas, querida? Elas começaram para que você pudesse acompanhar a passagem do tempo, como tudo aconteceu, como um dia eu me transformei na mãe que você irá lembrar. Como convivemos com a nossa história.

Guarde nosso segredo não tão secreto.

Com amor,
Mamãe.

2 comentários em “Lugar comum”

  1. Vez ou outra volto a ler este texto e ele ajuda a encarar a vida de uma forma indescritível. Obrigada, Paola. Muito obrigada, de todo o coração. Helena tem uma mãe incrível e será uma mulher incrível. Um abraço forte em vocês duas!

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