Pequeno guia prático para recomeços sem prática

 

12191158_989349761100445_8145514750767878547_oCarta escrita no dia 22 de novembro de 2015. 

Helena,

Quando tinha cinco anos meus pais se separam. E foi difícil. Lembro perfeitamente disso. Dele indo, a minha mãe ficando. Os anos com pouco dinheiro, pouca estabilidade. E lembro das visitas que fazia na casa da minha avó.

Na verdade, lembro muito nitidamente apenas de uma coisa: todo dia no fim da tarde meu pai sentava na beira da rua e ficava olhando o céu. E todo dia, naquele horário, passava um bando de passarinhos. Eles faziam esse mesmo caminho ano após ano. A árvore da frente foi partida por um raio, eu cresci, mas algo me diz que aqueles passarinhos continuam sua eterna caminhada para o outro lado do céu.

E sempre que transponho uma esquina, fecho uma porta ou viro uma página, sempre sinto que estou seguindo um caminho infinitamente antigo. Nossa civilização precisou superar e recomeçar para evoluir. Muitos corações partidos, cidades queimadas, passarinhos sem rumo, cidades extintas, animais esquecidos, uma quantidade inimaginável de partidas e despedidas para que eu, uma mulher sentada no colchão tomando sorvete, pudesse escrever algumas palavras piegas sobre.

E na verdade eu me sinto muito jovem com algumas cicatrizes velhas demais para o meu corpo, minha alma. São estrias, celulites, marcas que mostram um histórico de desistência, desespero, dor, felicidade, duas filhas, alguns relacionamentos fracassados, amizades incríveis e uma aptidão incrível para bater a perna na mesa. Marcas que me fazem humana. Que aprendi a me orgulhar, Helena.

Você vai precisar recomeçar em algum momento da sua vida. Eu sei que vai dar medo, você pode estar numa situação terrível, achar que não vai conseguir, que não dá conta. Recomeços são primitivos. Eles nos fazem questionar por verdades que nos contaram, mentiras que nos convencemos a acreditar, situações tão corriqueiras que a gente pensa que é normal. Recomeçar é uma forma de basta, de revolução. É admitir que não deu certo, mas que nós ainda podemos tentar.

Recomeços envolvem sujeira. É abrir a janela, jogar os tapetes fora, pegar toda aquela lama que a gente coloca nos cantos, por baixo, com medo de que alguém veja, ou pior, fique visível para os habitantes da nossa própria vida. É sujar as mãos, os pés, o corpo e depois lavar com a liberdade.

Recomeçar é deixar doer, deixar sangrar. Admitir que está ruim. Sabe, de tanto responder que tá tudo bem, um dia a gente acredita na própria mentira. Helena, não está tudo bem. Vai doer. Vai ser duro. Você irá aprender, mudar, se transformar. Reformular. E vai ficar tudo bem.

Um dia você vai acordar e vai estar doendo menos. Um dia a falta daqueles velhos tapetes que escondiam com a sujeira será algo bom. Vai entender melhor tudo que houve – e provavelmente vai perceber que não tem culpados, só atitudes ruins, péssimas escolhas. Cicatrizes que você nunca viu. Nunca verá. Outras que terá que conviver por todos os dias da sua vida. E irá se orgulhar, porque elas contam a sua história.

Eu sei que hoje eu não sou nem a sombra da pessoa que já fui. Semana passada estava no ônibus voltando para casa e olhei meu reflexo na janela. Fiquei olhando por minutos. Quando foi que me tornei mulher? Quando foi que meu olhar ficou assim?

Quando foi que eu finalmente assumi que coragem te faz perder pessoas, coisas, sonhos, mas a pior falta que existe é a de si mesmo. Hoje eu me pertenço. Como nunca antes. Recomeçar novamente me fez ver muito bem uma única coisa:  você precisa falar em voz alta.

Precisa dizer não em alto e bom som. Não pode ser só em carta, mensagem e telefonema. Você precisa levar isso para a sua vida, Helena. Precisa ter coragem não de recomeçar apenas, porque isso é consequência, mas de se assumir. De se permitir sonhar.

Quando você ler isso, será adulta. Então hoje te escrevo para contar que do lado de cá, nesse fatídico ano de 2015, nós estamos bem, estamos juntas, resistindo, brincando, comendo, sendo feliz. Por hoje nós conseguimos.

Continuamos olhando para o céu e procurando os passarinhos que a gente sabe, lá no fundo, que continuam voando para o lar. Porque é isso que importa.

Nosso pequeno guia prático para recomeços sem prática nos contou que com música, um pouco de persistência, um tanto mais de barulho, algumas revoluções silenciosas e dores nas costas, nós podemos. Nós conseguimos.

Com amor,
Mamãe.

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