Intocável e Inquebrável

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Carta escrita no dia 25 de julho de 2015. Chove lá fora.

Helena,

Por meses participei com um coletivo de mulheres incríveis na execução de um evento para discutir o impacto e espaço da mulher na cultura pop. Tudo deu errado até o dia em que me vi lá: tinha conseguido chegar bem. Levei na bolsa dezenas de sobremesas, na cabeça a idéia de que podia mudar algo e no coração a angústia do que eu sabia que seria os próximos meses para nós.

Tudo foi maravilhoso. E eu me vi cercada de gente incrível falando sobre idéias, pequenas revoluções e o espaço da mulher. Quando chegou a última mesa de debate, uma garota que assistia tudo fez uma pergunta “Vocês perderam muito se posicionando? Fizeram inimizades e ficaram mal vistas?”.

Me deu uma baita vontade de chorar na frente de dezenas de pessoas quando ouvi isso, porque eu poderia fazer uma lista de anos e anos de coisas e pessoas que se foram cada vez que eu dizia não, é errado, a culpa não é minha, lide com isso. E talvez o mais doido seja perceber que eu não perdi nada: eu ganhei liberdade.

Quando o médico olhou na TV do aparelho de ultrassom e disse que era uma menina, foi alegria, festa e o medo. Medo porque eu sabia que à partir do momento que você fosse uma mulher a culpa seria sua. Se você não se vestir corretamente, é puta. Se não se sacrificar no altar do casamento, é uma vagabunda. Se não limpar a casa sozinha e feliz, é uma porca. Se tiver o mínimo de sentimentos, é uma louca. Se não cuidar perfeitamente dos seus filhos segundo o padrão de outras pessoas, é uma péssima mãe.

E é muito difícil explicar para quem nos cerca, e geralmente vive essa realidade, o conceito de privilégio. Desenhar de forma bem clara qual a pressão e danos de uma cultura que glorifica homens e crucifica mulheres. Então sim, muita gente foi embora. Muita gente me humilhou e ofendeu. Culpa é algo que vou ter que levar para sempre.

Principalmente quando eu decidi escrever sobre isso, quando tornei público a minha luta e empoderamento, cada vez que descubro algo ou desconstruo um comportamento que sempre acreditei ser certo. Não nasci com essas idéias, fui criada numa família tradicional do Vale do Paraíba, oprimi mulheres a minha vida inteira, não só pela minha cor, mas principalmente pela minha ignorância. Eu ajudei a perpetuar de forma indireta algo que agora luto para destruir.

E eu quero deixar isso aqui registrado para você Helena: eu escolhi não ser mais assim. Foi minha escolha tudo que vai nos acontecer nos próximos meses, e eu vou ter que encarar as consequências disso para o resto da minha vida.

E faço isso com um grande sorriso no rosto, porque eu não posso te escrever “Querida, lute pelos seus sonhos, seja independente e feliz” vivendo na sombra da pessoa que eu sou e quero ser. Vou repetir para qualquer pessoa viva nesse mundo que uma mãe não merece ser infeliz pela maternidade, por um casamento, por uma casa. Dá medo? Sim. Parei para escrever isso enquanto desmonto a casa que por anos lutei para construir, enquanto jogo fora coisas que me foram preciosas.

Lembro da primeira vez que vi algo ser demolido, era uma casa antiga do lado da minha primeira escola. Um dia moravam pessoas ali, na outra semana ela estava vazia e uma semana depois havia uma placa “Interditado para demolição”. Eu não sabia o que a palavra demolição significa, mas entendi que algo ali ia mudar.

Depois de várias semanas, quando saí da escola a esquina estava toda paralisada. Fecharam tudo e as máquinas passavam por cima do que restou do alicerce. Por algum motivo eu senti a angústia, o desespero de ver algo ser reduzido a pó.

Nunca construíram ou plantaram nada naquele terreno, mesmo depois de quinze anos. Eles continua inóspito e infértil. Incoerente.

Não tem problema quando as coisas terminam, quando casas e sonhos são demolidos, mas nenhum terreno interno pode ficar sem florescer.

Nos próximos meses vou trabalhar como nunca antes para conseguir construir um lar para nós. E esse lar não pode ser destruído, quebrado, vendido ou abandonado, porque ele vai existir aqui dentro, embrenhado em sentimentos que são feitos de uma fibra revestida de amor e esperança. Intocável e inquebrável.

Com amor,
Mamãe.

4 comentários em “Intocável e Inquebrável”

  1. Gostei muito do que você escreveu, torço muito pela felicidade de vocês independente de estar junto ou não . Que vocês sejam muito felizes nessa nova empreitada Bjos Paola

  2. Recomeços sempre fazem parte de nossas vidas, sei que você é forte o suficiente e uma pessoa incrível que vai conseguir fazer como você mesmo diz uma nova casa pra você e a Helena, renovando suas convições e certezas. Medo do que vem todos nós temos, resta apenas ter a vontade inabalável de prosseguir e lutar por algo em que acreditamos, sei que você vai tirar isso de letra e transmitir isso pra Helena.
    Força! 🙂

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