Carta escrita no dia 10 de dezembro de 2014. Editada em 23 de fevereiro de 2015 e 24 de maio de 2015.
Querida,
A menina que sentou do lado de um bebê agonizante e pediu para algum ser Divino, quem fosse, salvasse aquele suspiro de vida, morreu. Ela deu seu último suspiro junto com a melhor parte de si. E posso viver por anos e anos, perecer com a força inexorável do tempo, os barulhos das máquinas, o desespero de ver uma vida findar dia após dia, o desespero de não ser ouvida, a culpa, a dor da perda, será algo que irá me perseguir onde vá.
Entrei naquele hospital como uma garota que sabia que tudo ia mudar e estava feliz por ter uma família, saí sem nunca ter segurado minha primeira filha viva. Lembro que quando finalmente estava voltando do enterro, olhei para o lado e vi uma linda garotinha saltitante, ruiva, com olhos brilhantes, e soube que isso jamais iria acontecer.
Resta muito pouco para se apegar para aqueles que ficam. Principalmente quando os que ficam foram vítima de uma injustiça sem tamanho, de um sistema de saúde que violenta e rasga mulheres. Um sistema que desumaniza a vida e envia bebês inocentes para incubadoras, para a morte porque a agenda é apertada. Porque está chegando o feriado. Médicos que são ensinados desde o primeiro ano de faculdade sobre como funciona o corpo, e muito pouco sobre como funciona o vínculo.
E por muitos anos remoí essa dor. Me culpei por ter engravidado sendo adolescente, me culpei por ter um útero que gerou uma vida para sofrer e morrer. Me culpei porque é isso que falam incessantemente para nós, meninas, jovens, pequenas fortalezas que ruem por falta de apoio. “A culpa é sua”.
A última vez que tentei me matar, tomei todos os remédios que o médico havia prescrito para depressão. Deitei na cama e fiquei ali, olhando para o teto. Quando tentei movimentar a mão e não consegui, naquele meio minuto em que meu corpo estava mole e não respondia meus comandos, mas minha mente ainda estava lúcida, pensei “Não posso”. Tentei levantar, não conseguia. Tentei gritar, não saia. E eu desesperadamente chamei internamente. Não podia morrer, tinha que ficar. Precisava resistir.
Quando acordei no hospital e percebi que estava viva, senti alegria. Depois de várias tentativas, anos lutando contra a depressão, dos pesadelos, do medo, dos segredos, de viver meses e meses da minha vida com ajuda de remédios, finalmente me sentia viva. E o que aprendi com isso, querida?
Muitos falam que é covardia tentar se matar, mas muitos ainda não entendem o que é depressão. Milhões ainda acreditam que a violência não existe e não é cometida dentro de hospitais, na fila do pão, na esquina da rua.
Não enterrei minha filha, enterrei sonhos, a esperança, o sentido de viver. Enterrei minha autoestima, e principalmente a faísca que todos temos e nos mantém em pé. Levei as piores lembranças comigo, me apegando no que me restava: a raiva.
Transformei meu luto em ódio. E naquele pequeno segundo antes de apagar na cama: consegui finalmente dar adeus aos sentimentos que me corroíam. Foram anos de tratamento, remédios, lágrimas, uma infinidade de abraços e o ato de se destruir por completo, para finalmente você renascer.
Laura, você vive. Você está nos dias ensolarados em que o vento joga o cabelo no rosto e só nos resta sorrir. Mora na chuva de inverno, gelada, sincera. Mora nas flores que tão teimosamente insistem em nascer no canto do asfalto. Você mora no atrito das pessoas que abraçam. Se faz ar quando sua irmã respira pesadamente durante o sono. Vejo você em tudo que me rodeia.
Minha doce bebê, seja livre. Vá voar pelo mundo. Você não está mais presa pela jaula do meu ódio. Vá aquecer o coração de pessoas que trazem vida ao mundo. Viva a eternidade daquilo que não perece ao tempo e nem pode ser destruído pela violência do homem.
E hoje quando me perguntam sobre otimismo, esperança, amor, sobre o que é maternidade, posso falar um único nome e viver em paz: tudo começou com Laura, tudo renasceu em Laura.
Sou mãe de duas meninas, Laura e Helena.
Uma adora pular e brincar de escorregar. A outra voa pelo mundo.
Filhas da filha de uma geração de bruxas que atingiram, mas não conseguiram queimar.
Com amor,
Mamãe.
Você é tão linda! Parabéns por esse novo parto e nova partida… Beijo no teu coração de bruxa 😉
É um enorme prazer te ler e acompanhar as particularidades do seu mundo. A cada carta para Helena me sinto feliz por de certa forma “participar” quanto telespectador e me sentir bobo, torcendo, sorrindo, em busca do tão cobiçado final feliz. Não é a primeira, nem a décima publicação que acompanho, pouquíssimos textos despertam meu interesse a qualquer momento do dia, e é realmente impressionante como o fato de surgir uma de suas cartas implicar em não me permitir esperar sequer o relógio alcançar o próximo ponteiro. Você realmente foi agraciada com o dom de emocionar e tocar a alma. Sua escrita é repleta de vida, e sentimento.
Pararei com tantos elogios porque até eu já estou me considerando esquisito. Apenas precisava que soubesse o quão extraordinário e incrível é a sua humanidade.
Continue produzindo. Espero um dia poder ser 50% para meu(s) futuro(s) filho(s) da mãe que é para os seus.
Obrigada Paola! Todas as suas cartas me ajudam bastante !