
Carta escrita no dia 1° de maio de 2015, às 5 da manhã, enquanto fazia frio lá fora.
Helena,
Queria te escrever que o mundo é justo, lindo e que irá te trazer apenas coisas boas, mas não consigo. Não posso mentir para você. E talvez essa seja a primeira carta que escrevo sentindo dor. Daquelas que rasgam a alma.
Quando enterrei sua irmã, realmente acreditei que não podia existir visão pior ou sentir uma dor que superasse aquela. De forma inconsciente aquele dia se tornou meu parâmetro para as porradas que a vida ia me dar: tudo é melhor que aquilo, venha, vamos combater.
E tudo veio, toda a água passou pela ponte, e eu me tornei mais forte e recobrei a esperança. Um dia veio a mensagem no meu telefone numa madrugada: o Lucas estava no hospital, não sabiam a gravidade. Levantamos, fizemos as ligações e o otimismo ainda morava ali. Ele ia sair dessa… Era o Lucas. Ele tinha que sair dessa.
Mas ele não saiu dali, ele partiu. E eu não fui a pessoa mais próxima, não falava com ele todos os dias, na verdade, já briguei com ele e às vezes tudo era nebuloso, mas o Lucas representava muito da minha esperança na humanidade.
Querida, eu queria tanto que você tivesse lembranças da pessoa maravilhosa que ele foi. Queria tanto que fiquei por horas olhando para o teto, pedindo para alguém voltar o tempo. Só uns anos, algo, não ele, não agora.
Eu queria que você tivesse chorado de rir das coisas insanas que ele fazia, que ele te ensinasse a jogar, que nas raras vezes que minha chatice não emporcava tudo, você tivesse presenciado como era legal ver o seu pai, o Lucas e todos os outros na mesa da cozinha, digitando, jogando, rindo.
Quando você ainda era um cisco na minha barriga, foi na casa dele, deitada na cama dele por horas e horas vendo TV que conheci um pouco do que era paz. Não ser duramente julgada, apontada e analisada. Na casa do Lucas, com ele, a certeza de acolhimento era eterna.
Não sei se é possível uma pessoa se transformar num lar, mas o Lucas foi isso para dezenas de pessoas; ele era o braço estendido, a mão que apoiava, a ação que fazia sorrir. Sem perguntas, sem neuras, todos nós podíamos voltar para as paredes seguras que a presença dele representava.
A dor da injustiça bateu no meu peito naquele dia. É uma dor que mistura tudo e você começa a questionar se realmente colocou alguém para viver num mundo porco como esse. Sempre fui a pessoa dos Direitos Humanos, que defende o fato de que todos são inocentes até que se prove o contrário, mas naquele momento me vi questionando tudo em que sempre acreditei. Minha visão ficou vermelha e na falta de saber como reagir, não reagi. Liguei o automático e permaneci assim até o dia de hoje. Fiz o que tinha que ser feito, apoiei quem mais precisava e chorei em imaginar a dor dos familiares, até que também parei de pensar sobre. Me colocar no lugar de mãe naquela situação seria insuportável.
Helena, eu quero que, quando você finalmente conseguir entender sobre o que estou escrevendo aqui, vá no lugar mais lindo que você já viu e pense no Lucas. Você não vai ter lembranças dele, mas vai ter o mais importante: o conhecimento do que ele representa. Com defeitos e imperfeições ele foi o amigo mais querido, a pessoa mais carinhosa, um ser humano iluminado. “Ele foi o melhor de nós.”
Hoje, quando já se passou algumas semanas e a rotina vai voltando a ser como antes, queria escrever essa carta para você, porque começamos a usar o verbo no passado, mas as lições que essa vivencia me ensinou será para sempre.
Lembre que pessoas inocentes perdem a vida e isso não demonstra que não vale a pena, mas vem para sublinhar ainda mais os motivos para lutar, para permanecer. Se existiu alguém no mundo que marcou e ensinou sobre amor, existe algo bom. Não vai ser sempre lindo, fácil, indolor ou justo. Tem dias que vai dar vontade de não respirar o mesmo ar que aqueles que são capazes de causar tamanho dano na vida de outras pessoas, e é nesse exato momento que nós temos que manter a fé.
A fé não é sobre religião, é sobre a esperança de que nossa sociedade se torne algo melhor, que nós de forma individual encontremos algo de bom para espalhar pelo mundo. É sobre compaixão.
Respiramos, sentimos, fazemos, vivemos com passos acelerados pela linha do tempo. Não percebemos que ele passa, porque não é algo palpável, mas é nesses momentos que percebemos que devemos respirar o mais profundo possível, sorrir até doer as bochechas e tentar evoluir de alguma forma. Essa é a homenagem para todos aqueles que já se foram: fazer a nossa vida valer a pena para que o tempo deles aqui não tenha sido infundado. Não sabemos se existe algo depois da vida, mas sabemos que durante nossos dias nós podemos valorizar e dar o sopro da existência para a lembrança de quem amamos.
Nós brincamos diversas vezes que ele não era desse mundo, já que ele podia comer litros de comida e continuar lindo e deslumbrante, que ele estava sempre sorrindo, dando jóia, falando para relaxar “Que isso cara, a vida é muito boa para ficar se preocupando com isso”. Fica a certeza que ele apenas voltou para casa, seja onde for. Nós ficamos aqui, olhando para a imensidão do céu, tentando encontrar uma estrela que brilhe mais e possa ser chamada de Lucas.
Bom retorno.
Com amor,
Paola.
Diferente de você, acordei as cinco da manhã com uma dor imensa, mas no rim. Sim, tenho pedras no rim e eles me atormentam aos montes de vez enquando. Claro que a sua dor é muito diferente da minha, que é física. Porém, essa dor, independente do seu fator, sempre vem como uma Lição, como algo a se pensar, analisar. E acho você um ser humano incrível por estar lidando com a morte e mesmo assim conseguir enxergar isso. Fiquei feliz em receber o email de que você escreveu uma nova carta, pra sustentar o meu pequeno egoísmo. Espero que você fique bem, pois nós somos o que ficamos, por enquanto. Quanto ao “ficar”, acredito eu, que a principal característica do ser humano é superar, passamos por coisas horríveis, mas sempre estamos aqui, com fé, fé de que tudo possa melhorar. E quanto a mim, também, sempre repito isso “preciso beber água” rs.
E consumir menos sódio/cálcio. Visitar o médico e descobrir o que forma suas pedras pode ajudar 🙂
Tu supera daí, nós superamos daqui, e assim vamos caminhando.
❤
Helena, acho que vc não dúvida disto: sua mãe é uma pessoa dessas que com sua sensibilidade, mudam seu mundo para bem. Você já tem um melhor mundo a causa dela. Beijo.
nao sou de comentar , mas não poderia passar por esse texto em branco. Esse texto foi um dos mais bem escrito sobre o Lucas e essa situação que já li. O Lucas era exatamente isso é apesar de não estar presente nesses anos ele foi exatamente isso que você escreveu , e saber que ele não mudou a sua essência nessese deixa feliz . Sempre lembrarei dele como “o positivistas acolhedor “, ” o Don Juan” , tinha tanto amor no coração que transbordava . Excelente texto e conhecendo o Marcelo é um pouco sobre você sei que a Helena ouvir muitas histórias sobre ele . Que o coração de vocês se acalmem e ilumine , eu acredito no paraíso e acho que ele só voltou pra onde ele pertence , ao lado do Pai
Beijos