Oração ao Tempo

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Carol Harkness

Carta escrita num dia de chuva.

Querido Tempo,

Já se passou vários dos seus minutos desde a última vez que deitei na sombra de uma árvore e olhei suas artérias, espalhadas, encobertas por madeira e adornadas com folhas. Talvez o maior segredo, e tesouro, da vida adulta seja conseguir passar por todas as metamorfoses externas, e revirar o interior, sem perder os traços que nos tornam pessoas que valem a criança que se alimentou ansiosa do seio da mãe.

Quando criança, morei numa casa num bairro não muito seguro, então passei dias e dias no meu quarto, lendo. Pela janela era possível ver a copa de uma Mangueira de outra rua. Era uma árvore gigantesca, cheia de frutas na estação e que se tornava um ótimo abrigo para passarinhos.

Da janela, inúmeras vezes fiquei contemplando aquele condensado de vida, uma nuvem de passarinhos que levantavam voo e podiam partir. Ali imaginava meu destino: um dia iria partir e me adornar de vida, sorrisos e esperança, como todo pássaro merece ser.

Parti e voltei inúmeras vezes daquela casa. Um dia, há quatro anos, daquela mesma janela, descobri que haviam cortado minha Mangueira. Minha amiga, parceira de crime e eterna confidente.
Revoltada, busquei pelo bairro alguma explicação para aquele ato hediondo e ouvi inúmeras vezes que a árvore estava velha, era um perigo, trazia muitas formigas e passarinhos, que por sua vez mordiam crianças e sujavam roupas recém lavadas no varal da vizinhança.

Meu luto durou semanas e ninguém conseguia entender porque lamentei tanto por uma árvore. Por seus pássaros. Ninguém entendia que havia criado ali uma réplica da minha vida perturbada. Criei textos, manifestos, fiz uma bagunça sem saber o porquê.

Tempo, você me pregou uma peça, parabéns.
Naquele momento não soube dizer, mas hoje, depois de anos, uma família, várias desilusões e uma série de caminhos perdidos, entendi que jamais serei um pássaro. Não tenho a capacidade de partir, abandonar, migrar e voltar, não encontrar mais pouso e apenas ir para outro lugar.
Tentei me convencer que era esse tipo de pessoa, que poderia apenas desistir e encobrir tudo com uma teoria de solução.

Serei para sempre aquela árvore, que permanece. Vou trazer formigas, incômodos, sujeira e um tanto de ar fresco, talvez. Um dia, vou morrer, mas antes será eterna as tentativas de me arrancar pela raiz, podar e nesse meio vou sangrar.

Sou capaz de abandonar casas, coisas e situações, mas todas as vezes que tentei retirar minhas crenças: uma parte do que me forma morreu.

Nossas formigas, nossas asas que se revoltam contra a tempestade, nossos gritos silenciados e dores diárias que se tornam piadas, todo temos um pouco da árvore do outro lado da rua de uma menina perdida em solidão.

Tempo, conheço um pouco da sua impiedade de jogar, corroer retinas que não estão disponíveis para ver sua verdade. Também sei sobre a necessidade da paciência de te esperar, analisar e sorrir no fim das contas, mas te peço, gentilmente, que seja paciente com as raízes ou asas de minha filha.

Ninguém disse que ser mãe era assim. Temer e aplaudir. Saber e mesmo assim tentar driblar todas as possibilidades de presenciar uma lágrima necessária.

Lhe conceda sua mão quando ela tombar ou perder o fôlego, quando o vento for muito forte ou frio. Quando o chão ansiar sua queda. Mantenha a persistência em seu coração e mantenha o brilho no olhar que agora sorri para a Lua e corre atrás sonhos que habitam outro mundo.

Minha pequena menina será livre e se alguma de suas amarras encontra-la numa esquina desse mundão, nós teremos uma conversa, Tempo. Como mãe eu lhe concedi uma parcela do meu corpo e com ele a memória de nossas raízes. Só me resta olhar de minha janela suas mudanças e contrastes.

Também dizem que você é uma Divindade. Um Deus pagão ou o Pai de Jesus Cristo.
No fundo, isso não me importa, querido Tempo.

Essa carta também pode ser uma prece. Uma oração.

Amém.

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