As cicatrizes

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Carta escrita no dia 27 de junho e finalizada em 21 de julho de 2014, depois de muitas incertezas.

Helena,

Antes de você nascer, fiquei nua na frente do espelho e chorei por algumas muitas horas, até sentir que estava oca. Já faz uns anos que isso aconteceu, mas o sentimento daquela noite será uma das lembranças mais fortes da minha vida, porque naquele dia eu dei um basta.

Sua irmã havia morrido, tinha terminado um relacionamento de três anos que era meu porto seguro, morava num lugar que odiava, com pessoas que não me compreendiam e me agrediam fisicamente e verbalmente, todo santo dia. Foi um auge de desespero tão grande, que a vida já não fazia sentido. Para que viver tudo aquilo? Não tinha mais forças e assim foi.

A pior parte de contar para alguém que você tentou se matar é o olhar de pena, aquela sobrancelha arqueada que constata sua  loucura, o comentário para terceiros te chamando de fraca. Tentar explicar é em vão, porque apenas quem chegou no fundo do famoso poço sabe como é. Tomei remédios, cortei os pulsos, cortei os braços, me machuquei toda, mas o pior de todas as feridas não era aparente. Ninguém via, ninguém se importava.

Foram tantos os dias de perguntas retóricas “Você está bem?”, claro que não, era evidente, mas após ouvir o meu “Claro”, vinha o alívio. Assumir a responsabilidade de ajudar alguém é algo que quase todo mundo corre, afinal, a vida é tua, boa sorte. Não quero te passar uma impressão ruim, Helena, mas alguns casos são tão carregados de preconceito, que é difícil acreditar em reações positivas.

Depois de alguns anos de tratamento intensivo, faltava algo. Poderia ficar mais mil anos em terapia, mas de nada iria resolver, porque meu problema havia sido semeado na infância e regado com o tempo. Era necessário arrancar as raízes do meu coração e jogar muita coisa fora.

Tudo que você vive, tudo que você toca e se envolve lhe tira um pedaço. Relação é doação. Se você diz um “Bom dia” na fila da padaria, você ofertou um pouco de si e assim será para sempre. O mesmo vale para o que existe de ruim, nossas ações condenáveis nos levam a mesma parcela, se não maior, do que nos forma. Dar adeus ao passado é dar adeus a um pouco do que te constituí.

Naquele dia, dei adeus a quase tudo que havia em mim. Foi um vazio avassalador que cultivei por muito tempo, até encontrar novos motivos e forças para preencher tudo que havia sido retirado e violado. No fim, me restou as cicatrizes.

As mesmas tentei esconder, com vergonha. Usava relógio, passava maquiagem, cheguei a mentir, contando que na verdade tinha caído no vidro. O medo de assumir é outro grande problema, que ficará para outra carta.

Atualmente tenho dez cicatrizes menores nos braços, duas grandes nos pulsos, um grande corte na perna, sensibilidade a remédios e um sorriso rasgado no rosto. Tantas outras na alma, que aprendi a amar. Sou apaixonada por cada marca do meu corpo, minhas celulites, minhas manchas de espinhas, meus calos nos dedos, minhas perebas. As vezes brigamos, mas é coisa de momento.

Sem marcas não estamos vivos. Nossa primeira cicatriz é o corte que nos separa de quem nos fez, dali em diante, é isso, uma sucessão de cicatrizes pulsantes que nos provam que estamos aqui, que a dor existe e sempre há o outro lado da moeda, a alegria de ter vivido, amado, se machucado e rasgado um pouco  para doar a esta imensidão. E eu espero, Helena, do fundo do meu coração, que você tenha muitas no seu corpo e alma, mas nem por isso deixe de buscar a felicidade. Neste dia, terei certeza que você viveu uma vida boa.

É igual quando somos crianças e caímos. Nossa mãe diz “Não corre!” e você corre, caí de joelhos no chão, se estrupia toda, chora e lamenta. Quando chega a hora de lavar, é pior ainda, dói como o inferno e no fim, você vai deixar de correr? Não. Porque joelhos existem para serem ralados, mães para avisarem e filhos para nos ensinarem que a vida é linda.

Vai lá, Helena, corre!

Com amor,
Mamãe.

2 comentários em “As cicatrizes”

  1. Eu me emocionei demais com esse post.
    É verdade sabe nos temos que dá aos nossos filhos essa chance de se “quebrar” para aprender e mesmo sabendo que doi neles e em nós temos que os deixar livres para fazer denovo.
    bjs

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