Sobre telefones e martelos

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Esta carta foi enviada pelo leitor Ronald Sclavi, que também escreveu uma linda carta para sua Luísa.

Querida Helena,

Não nos conhecemos, mas assim, de longe, já gosto muito de você.  É que sou pai e, quando somos pais, somos pais de todos os filhos do mundo. E os seus pais são pessoas muito especiais porque resolveram dividir com o mundo essa experiência tão rica. Sou um desses leitores, um desses pais… Depois do último post de Paola, não resisti e resolvi escrever a minha própria carta.

Sabe Helena, pais são criaturas em eterno processo de aprendizado.  Minha filha, a pequena Luísa (sim, vocês serão sempre pequenos) tem 14 anos e me surpreende a cada dia. É uma ruivinha geniosa e generosa, doce e picante e está ensaiando seus primeiros passos nesse mundo enorme. Anda falando em intercâmbio, em morar um tempo em outro País… Que frio na barriga, Helena…

O que me consola é que hoje temos essa tal de tecnologia e, mesmo distantes, podemos continuar por perto. E é sobre tecnologia que eu gostaria de falar contigo.

Seus pais devem ser mais jovens que eu, mas o meu primeiro telefone era um aparelho preto, grudado na tomada e mais parecia uma tartaruga com um disco no lugar do casco. Tínhamos que girar esse disco várias vezes para completar uma chamada. Outro dia, Luísa tentou usar um desses e se atrapalhou toda… Foi engraçado!

O seu primeiro telefone, provavelmente, obedecerá a comandos de voz e não terá discos e nem botões. Com ele, você poderá conectar-se com o mundo em um segundo e conferir as lindas cartas que a mamãe deixou pra você. Mas, não se engane! Telefones, computadores, tablets, são burros como martelos.

Isso mesmo, Helena. Um martelo, nas mãos de um bom marceneiro, é capaz de produzir peças lindas e úteis. Em outras mãos, pode machucar. Martelos e telefones são tecnologias neutras, nem boas, nem más. Quem pensa é você, somos nós.

Veja o exemplo dos seus pais. Enquanto tem gente por aí que só abre um computador para falar mal dos outros, para trapacear e levar vantagem, eles decidiram usar esse martelo para construir uma experiência coletiva, juntar pessoas, dividir experiências, felicidades e angústias, na direção de um mundo melhor. Não é genial?

Pois bem, Helena. O fato é que eu e os seus pais não nascemos com computadores e smartphones nas mãos. Pegamos uma carona nesse mundo que é muito mais seu do que nosso e tentamos fazer o melhor possível com essas ferramentas.

Quando éramos crianças, o mundo era bem diferente e as regras eram outras. Como não havia blogs, nem redes sociais, tínhamos apenas nossas turmas e, com elas, aprendíamos a conviver, dividir, compartir…

Era bem mais simples, tenho que dizer. Bastava olhar nos olhos e dizer o que sentíamos. Não postávamos…. O inbox era uma caixa esquisita em frente de casa que, vez ou outra, estava cheia de papéis escritos com lápis e caneta: as cartas. Como era emocionante receber uma carta! Pergunte pra mamãe..

Já a sua geração tem uma missão muito importante. Vocês convivem juntos e separados. Como nós, andam em bandos, mas cada qual com seu pequeno mundo nas mãos, teclando, fotografando, filmando, de tudo um pouco.

Para nós, desse outro mundo, é muito estranho assistir a essa mudança. Mas o fato, Helena, é que, como disse sua mãe, “logo após você, existe uma imensidão sem fim”. E ainda não inventaram um jeito de, ao mesmo tempo, olhar para frente e para os lados.

Quando vou ao cinema, fico muito irritado com aqueles telefones brilhando no meio do filme. Nos restaurantes, os casais mal se encaram, tão mergulhados que estão nos seus mundinhos de mão. Nos ônibus, trens e metrô, velhinhos ficam em pé porque os mais moços sequer percebem a sua presença.

Parece que as pessoas estão desaprendendo o que é conviver. Sim, porque viver é fácil, mas conviver é viver com, viver junto…

As Helenas e Luísas terão que encontrar uma forma de regular esse convívio e resgatar a elegância, a gentileza e a graça de uma existência em grupo.

Do mesmo jeito que você aprenderá a cortar um bife (no começo isso é bem complicado…), terá de inventar um jeito bacana de usar tanta tecnologia sem que o sujeito ao seu  lado tenha acabe engordurado com bites e bytes que escaparam do seu smartphone.

O nome disso, Helena, é etiqueta. A palavra deriva de outra, muito importante: a ética. Etiqueta é a pequena ética!!!

O seu mundo carece de uma nova etiqueta. Os carros já abrem as portas com um botão e os cavalheiros, aos poucos, não cometem mais essa gentileza para as senhoritas. Também não será necessário aprender como agir quando um garoto a convidar para dançar, porque ninguém mais dança de rosto colado (uma pena…).

Então, Helena, o lugar das gentilezas nesse novo mundo, precisa ser descoberto. E esse pode ser um bom legado para você e Luísa deixarem para os seus filhos.

O segredo é parar um pouco e olhar em volta. Veja como é cafona a desatenção, como é triste conectar-se com essa caixinha brilhante e perder a estrela cadente, o passarinho cantando, aquele bebê dando o primeiro paço, o cachorro latindo.

Quando estiver com alguém, olhe no olho, abrace, converse… O sorriso da sua amiga é mais importante que o selfie que ela postou. Use tantos “obrigados” , “com licença”, “por favor”, quantos shift, control e del.

Se um dia, no futuro, você e Luísa decidirem desligar seus pequenos martelos para curtir um dia no parque, certamente encontrarão alguém para dar o lugar na fila da lanchonete, uma criança para soprar o machucado e um idoso a procura de uma sombra. Conviver, meninas, é a razão da nossa existência.

Nesse dia, Helena e Luísa, nós estaremos bem mais orgulhosos!

Com carinho,
Ronald

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